segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Abri-te a porta



Entraste por acaso, quando abri portas ao mundo.
Abeiraste-te, perguntaste se podias entrar.
Eras livre, eras seguro, eras tão transparente ! …
Li-te em cada palavra como se fosses um livro,
Reli cada frase para te acolher melhor,
Assim como quem quer ter a certeza que vale a pena,
Deixei o meu  coração tragar cada palavra tua,
cada silêncio e cada vírgula desenhada no ar.
Parecias-me cristalino, …
“O coração não se engana”, pensei eu.
O meu coração não se enganava.
Eras tu, assim, ali, à minha frente,
Como que saído de um sonho azul,
Para mim, só para mim.
Vivi-te cada centímetro,
devorei cada reflexão tua,
Ouvi-te cada ideia.
Pegaste-me pela mão,
Aniquilei todos os meus fantasmas e fui,
Fui contigo sem medo nem sombras negras.
E fomos fazer caminho novo,
Construir laços e rendas à nossa volta,
 E adormecer juntos.
 E o acordar, … será o que for.
Maria Adelaide Santos

domingo, 23 de novembro de 2014

D. Luís - a ponte

O vento cortante da tarde tinha dado lugar a uma aragem fresca e a noite vestira-se de luzes e reflexos  suaves.
O rio corria muito calmo, silencioso, dir-se-ia que não queria descer.
Pudera, a noite estava tão linda! E, na ponte, havia uma presença nova: uma visita inesperada.
Quem será? Perguntou-se o rio, no seu pensar agitado de quem costuma passar a correr, sempre a correr, no mesmo sentido, sem olhar para trás. E agora corria brando, extasiado, a olhar para cima.
Viu-a caminhando, saboreando cada passada, feliz, respirando toda aquela noite e todas aquelas luzes que, entretanto, se tinham acendido para a receber.
Pela primeira vez na sua vida ela estava a atravessar, a pé, aquela ponte, ao sabor do vento fresco da noite e do rio que a acolhiam e se esmeravam em luz e em melodia de boas vindas.
A primeira imagem que registou foi a de uma cidade suspensa nas margens. Suspensa em colunas de luz que mergulhavam nas águas à procura de um suporte forte que segurasse aquela cidade crepitante de vida.
Ali, naquele lugar, desejou abraçar o ar, abraçar a noite, abraçar a vida, … mas, acima de tudo, apeteceu-lhe abraçar abraços a braços. Resistiu. Continuou a caminhada.
A outra margem esperava.
Cruzou o rio, de um lado ao outro.
E ouviu. Ouviu histórias de gente que ama e que celebra o amor, que celebra a vida, que se entrega à verdadeira arte de viver e de amar.
Nesse momento, uma vez mais, desejou abraçar abraços a braços.
Olhou ao seu lado e, … foi possível.
Era a primeira vez que sentia a ponte debaixo dos pés, a pé e abraços a braços.

Maria Adelaide Santos

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Somos o que queremos e fazemos



A Vida ensina-nos e muda-nos.
Faz de nós uma massa espessa de alegrias, risos, lágrimas e dores. Sentimentos difusos que, em momentos especiais, ganham vida, erguem-se, adensam-se e surpreendem-nos, animam-nos ou, se deixarmos, derrubam-nos, literalmente. A toda esta amálgama assim acumulada e vivida, chamamos Experiência.
Depois, se estivermos atentos e quisermos, com esta amálgama também podemos povoar o nosso imaginário, recriando, inventando, construindo ideais, imaginando vivências novas, diferentes, outros "sentires" - prefiro esta à palavra sentimentos -  que, se possíveis, nos abrem portas, de par em par, para o deslumbramento, para o gostoso que é viver, para a felicidade, para a plenitude.
A isto chamamos Sonhos.
Por fim, e ainda, se estivermos atentos, e soubermos escutar-nos, sentir-nos, perceber-nos e, se acreditarmos em nós, podemos dar início a uma jornada de glória, agarrando nas ferramentas que possuímos,  com as duas mãos e com a alma, e irromper à conquista, em busca desses sonhos.
Se os vamos encontrar? Talvez sim, talvez não.
Mas se não tentarmos, se ficarmos quedos, surdos e mudos, por certo que não.
E é por isso que somos o que queremos.
É por isso que somos o que fazemos.
Maria Adelaide Santos

domingo, 2 de novembro de 2014

A tua vez



Tinha chovido a manhã toda.
As árvores estavam, agora, a libertar as últimas gotas que tinham ficado nas folhas.
O sol brilhava intenso, no céu. As flores sorriam-lhe, agradecendo o calor que as fazia desabrochar e mostrar as suas cores vivas, alegres e radiosas.
Bebericando nas poças, as pombas, os pardais e uma ou outra gaivota, todos desfrutavam daquele início de tarde: espolinhavam-se os pardais, guerreavam as pombas por uns pedacitos de pão que por ali havia, ainda amolecidos pela chuva.
Estava tão absorta por esta natureza assim viva que nem dei pela tua presença naquele banco, debaixo da árvore mais frondosa e sombria que havia no jardim.
Sentada, a cabeça entre as mãos, cotovelos apoiados nos joelhos, não comungavas daquela paisagem. Estavas longe, muito longe dali.
Seria cansaço? Seria sono? Ainda me interroguei mas, depressa percebi o que estava a acontecer.
Não, não eram nem o cansaço nem o sono que te pesavam.
Tu estavas a mensurar a tua dor, aquela dor que os teus olhos se recusam espelhar e que tu carregas há anos. Estavas a lutar contra ela de forma muito tua, muito só, muito recolhida, porque não tens a quem a contar. Não tens com quem a partilhar. Sabes que dividir alivia mas não sabes com quem o fazer. Teria de ser com alguém muito especial, alguém em quem te pudesses ver e rever, como tu.
Nunca gostaste de mostrar que sofrias mas, sabes, minha amiga? O sofrimento é natural, é humano, não é de homem ou de mulher, é dos seres humanos, teu e meu e de muita gente.
Por vezes não prestamos atenção ao dono dos passos que caminham ao nosso lado; ao homem que se cruza connosco na rua; ao rapaz que ouve música, meio adormecido, no metro; à mulher que carrega quatro sacas cheias e pesadas; àquela mãe que leva um filho ao colo e outro agarrado ao vestido e ainda um saco à tiracolo, ... simplesmente não os vemos, não os ouvimos, não estamos interessados nos fardos que transportam.
Só vemos os invólucros de cada um. Mas lá dentro, embrulhados naquele corpo e naqueles olhos vazios, existem um mundo carregado e uma dor como a tua, talvez maior e mais profunda, que deixa sulcos na fronte, vago o olhar e arrastados os passos.
Deixa partir a tua dor! Dá-te espaço e tempo para seres, para construíres e para recomeçares.
Ama-te! Ama-te a ti primeiro! Em breve irás amar os outros e ser mais tu. Inteira. Livre.
Eu sei. Ele chegou como sombra, na penumbra, tocou-te a alma, ao de leve, marcou-te a vida, para sempre. E saiu outra vez. De vez.
Mas tu podes! Tu és capaz de reescrever a tua felicidade, de replantar a tua alegria, bem agregada à tua força e serenidade e, sabes? o teu dia vai chegar. Porque tu mereces. O teu coração é do tamanho de um coração pleno de amor pelos outros e para os outros. E quando o teu coração se abrir, verás a vida renascer. E vais perdoar. Se já não o fizeste, e nem te deste conta.
Maria Adelaide Santos

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Uma vida em flash


Eram 17:45 do dia 9 de Maio. Mais um dia de trabalho terminado.
Entrei no elevador panorâmico. Pressionei o botão para o rés-do-chão. 
O elevador fechou-se atrás de mim.
Uma vista fantástica a daquele  13º andar.
Até ao rés do chão a minha vida passou em flash, como se tivesse durado alguns segundos. Apenas o tempo da descida.
Nesta viagem de segundos, vi-me apaixonada pela primeira vez, criança ainda, o amargo de  um oceano pelo meio, as longas horas de soluços e dores de barriga de uma menina de onze anos apenas. Ele era o actor mais bonito da série de televisão a que assistia todos os dias ao fim da tarde.
Recordei os tempos felizes e despreocupados da minha infância e juventude, os sobressaltos e aventuras atrevidas, as ilusões e castelos construídos em solos movediços e traiçoeiros.
Recordei o auge da minha existência e passagem por este lado da vida, experiência só possível a quem tem o privilégio e a bênção de ser mãe.
Por aqui me detive, como quem encontra a cabana ou o refúgio mais auspiciado perante a maior e mais violenta tempestade.
Neste recanto me aconcheguei. Recusei-me a sair dele.
O elevador parou. A porta abriu-se. Era tempo de sair.
Tempo de enfrentar a rua fervilhante de gente, de barulho, de sol, de vento, … de rumar ao meu recente mundo de novo. De pôr os pés naquela paisagem fantástica que havia visto lá do alto. E regressar. Regressar a casa. Agora mais vazia.
Maria Adelaide Santos

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Amores clandestinos





Nunca como hoje, o mar se uniu ao céu de forma tão cúmplice.
Era como se céu e mar fossem um só e, assim misturados, tocassem nas rochas, as contornassem, se estendessem e viessem desfazer-se em movimentos de espuma aos meus pés.
Sabemos que o mar vive, há séculos, um amor intenso e eterno com a areia. Porém, como qualquer homem, perde-se em namoros com a brisa, com uma chuva miudinha, com a Lua, ... numa ânsia por uma nova conquista, pelo sabor secreto e oculto da sedução.
Mas ele volta. Ele regressa a cada segundo, com um abraço terno, um segredo sussurrado, um cântico envolvente e arrependido que extingue a traição e lhe devolve a sua amada.
E ela acredita. Ela abafa o desgosto.
E voltam a amar-se, continuamente, ora em frémitos intensos e possantes, ora em jeito calmo, terno, suave e tranquilo, como só ele sabe e ela gosta.
Mas hoje, hoje o mar uniu-se ao céu.
Será que anda a cortejar alguma estrela?
Se a areia descobre, vai ter de matar mais um desgosto. É que as estrelas são lindas. E brilham, brilham e brilham sempre que lhes apetece.
Maria Adelaide Santos