quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Amélia



Amélia acordou cedo.
A luz do Sol invadiu-lhe o quarto por entre as frinchas das persianas como que a dizer-lhe: Anda, salta daí e vem respirar esta luz, beber esta magia matinal e dizer aos pássaros que estás feliz! 
E estava. Mas ficou na cama.
O seu pensamento transportou-a aos dias anteriores. Ainda vivia na sua memória alguma dúvida se era real ou se – como fazia muitas vezes – precisava de se beliscar para ter a certeza.
Ele era real! O beliscão comprovou-o.
Havia no seu rosto uma certa magia, um encanto diferente, uma ausência mascarada de ternura.
Era um traço leve, fino, que lhe colava a alma aos olhos e lhe iluminava o sorriso.
Parecia que toda a verdade existente no mundo tinha sido depositada ali, que toda a confiança morava nos seus olhos e que o Universo tinha escolhido aquele rosto para se refugiar.
Tamanha segurança e transparência emanadas daquele olhar eram pequenos toques, leves chamamentos à sua consciência de ser sensível e alerta para a descoberta.
Contudo, dava-lhe medo olhá-lo de frente.
Parecia que aqueles olhos a despiam e lhe arrancavam os pensamentos, até os mais íntimos vislumbres. Era como se o seu Eu mais profundo não se pudesse esconder e se mostrasse sem que ela o pudesse impedir.
Ainda se lembra de ter pensado: "Eu não posso deixar-me revelar. Não estou à sua altura".
Então, decidiu que ela também poderia ser assim. E jurou mudar. Crescer. Custasse o que custasse!
A sua mudança começou na forma como o seu medo se transformou em admiração e de como o tempo se encarregou de o transformar em atracção.
Mas como qualquer moeda tem sempre duas faces, agora, era outro o medo. Era o medo de revelar não ter medo. Era o medo de revelar a admiração, de deixar transparecer esse fascínio, de se mostrar sem véus, sem o seu habitual papel de embrulho com que se vestira durante anos.
Valeria a pena continuar a esconder? Valeria a pena insistir no recato? Ah! "Recato", que palavra tão arcaica! Seria correcto, seria justo? Já não era um recato puro, genuíno. Tantas dúvidas!
Então, onde estava a sua consciência de ser sensível e alerta para a mudança?
Tinha de deixar esse Eu sair. Tinha de não ter medo, porque o medo tinha mudado e, de medo ao olhá-lo de frente passou a ser encanto, desejo, admiração, confiança, ... acima de tudo, confiança e tranquilidade ao olhá-lo nos olhos.
Resolveu que tinha de encarar o medo de forma diferente. E em vez de MEDO, chamou-lhe FEAR. Porque lhe dava jeito. Amélia tinha destas coisas. Fazia experiências com as palavras.
E começou a dissecar o MEDO, ou antes, o FEAR. E chegou a esta fantástica conclusão: FEAR - Further Energy to Achieve Results.
Foi, gradualmente, adquirindo, construindo, potenciando mais energia para atingir os resultados que pretendia. O medo dissipou-se, a auto-estima foi-se acomodando, ganhando algumas raízes, a confiança foi ganhando formas, o seu Eu foi crescendo por dentro, de forma mais sólida, ... claro que ainda leva algumas rabanadas de um vento teimoso e despeitado que insiste em soprar e abanar os alicerces desta estrutura que pretende construir mas, … ela é mais forte.

É que, aqueles olhos já não a assustam: Inspiram-na!
Aquele sorriso já não a bloqueia: Desafia-a!
Aquela segurança e sabedoria já não a intimidam: Animam-na!
Passou a ser o seu anjo da guarda. Sim, com letra pequena, porque passou a ser aquele que, aqui, neste mundo terreno, a inspira, a desafia, a move e lhe permite ser Ela.
“É bom sermos nós! É bom poder dizer tudo, mesmo tudo”. Pensava.
Escreve-lhe quase todos os dias. Conta-lhe os seus segredos, as suas dúvidas, as suas quase certezas, as suas conquistas - tão ínfimas, algumas! Ridículas, qualquer um diria. Fala-lhe do tempo, do Sol, da brisa que a toca, ... do dia e da noite, dos seus dias e das suas noites, ... dos seus sonhos, ... de tudo aquilo de que lhe apetece falar.
“Ao nosso Anjo da Guarda, - agora com maiúsculas - oramos, pedimos e agradecemos.

Ao meu anjo da guarda, não peço, não oro mas agradeço, partilho, desabafo, confidencio, ... permito-me não ter vergonha.
Gosto muito mais de mim sem papel de embrulho. Sem laço. Assim, FEARLESS!”


Amélia era, novamente, uma mulher feliz.


Porquê
Maria Adelaide Santos

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